Danielle Moraes
4 min readNov 4, 2022

Folguedo e Suor

A lua era testemunha da quentura daquele pedaço de terra. Abrilhantava o rufar dos tambores e as fagulhas da fogueira que, em festa, salpicavam pelo ar.

Podia ser jongo, mas era batuque e tantas outras coisas mais. Daqueles que as mãos simplesmente seguem o sentir dos corpos e estes, respondem movimentando o ar ao redor. Desenfreado, frenético, quente, o toque seguia sem rumo, conduzido pelos olhos fechados daqueles que emprestavam suas palmas para fazer a festa acontecer.

Samba no mato é um convite ao passado, a reviver o tempo ancestral, conduzidos por mãos calejadas que traduzem, nos tambores, o dialeto da herança de saudade.

Três homens negros davam o tom da noite. O mais alto, forte como um guerreiro, batia o rum de olhos fechados e boca aberta, como quem deseja engolir o mundo. Suas mãos firmes tocavam o couro em um misto de respeito e agressividade. O segundo, jovem de olhos iluminados, sorria e suava, batia o rumpi freneticamente como quem envia uma mensagem através dos sons, mensagem eterna ao ar e à terra. O terceiro, um senhor, mãos calejadas da lida diária, pele negra enrugada e brilhante como noite de luar, olhos levemente azulados, fosse pelo negrura ou pela idade, tocava - lé- quase - delicadamente, marcando o compasso que embalavam os corpos.

No canto, atrás da roda, um menino sentado no chão de terra batida observava tudo entre as pernas dos dançantes. Olhos de azeviche, as pontas dos dreads presos apontavam para o céu, como quem dá caminho. Os olhos brilhavam como o sol quando atravessa o uma gota d'água e o rosto salpicado de suor era a moldura de um enorme e branco sorriso que, vez ou outra, aparecia, ostentando o diastema em prosperidade. Ele observava com atenção cada movimento, cada respiração, cada passo. Seus sentidos, embriagados pelos sons, cheiros e imagens, faziam sua pele se eriçar em arrepio e seu espírito arder no corpo.

Outros corpos se reuniam ao redor da fogueira, dançando, gargalhando. Vez ou outra, alguém tomava o centro da corte, riscando os pés no chão e fazendo poeira subir. Mal alguém saía, outros adentravam a roda, em sorrisos e entrega.

Ele seguia observando. O toque virou e um novo casal tomou o centro das atenções. Os corpos negros e suados pareciam se completar em beleza e desejo ardente. Em dupla, umbigos se encostavam em cumprimento e reverência, girando e sorrindo em quase êxtase. Peles suadas encostavam e escorregavam. Mãos na cintura, cabeça no colo, mundo girando. As coxas dela, à mostra pela saia que subia agarrada por dedos firmes, serviam de estrada para uma gota de suor insistente, que descia perna abaixo. O fogo iluminava a gota, que brilhava, e retia a atenção do menino, movido pelo instinto de quem ainda nem nomeia os próprios desejos. A cintura, à mostra, limitada pela linha da saia, girava, de um lado para o outro, com o movimento dos pés. Os seios, empinados e quase livres, cobertos apenas por uma camisa suada de algodão, ameaçavam perfurar o pano que quase nada cobria. O ventre do menino respondia, inconscientemente, vibrando e pulsando o desejo incontido que é a própria virilidade da juventude.

A lua redonda seguia insistente no céu. Era a convidada especial daquela noite de festa. Lua acima e gota abaixo, o festejo ancestral seguia em ritmo, cores e sons para encanto de quem vivia e assistia. Alguém entoava uma cantiga, que logo era engolida pelos atabaques e gargalhadas, quase como se não existisse problema no mundo.

Tudo ali se misturava, já que tudo era parte do mundo e de cada um que caminha pela terra. Não existia vergonha ou culpa pelos corpos à mostra, pelos toques de pele suada, pelas gargalhadas altas ou pelos movimentos soltos. Não existia preocupação com o porvir, porque a vida se vivia no agora. Os atabaques rufavam para lembrar a todos que estavam vivos, como as batidas do coração, a quentura do sangue pulsando nas veias, dos pés no chão e, apesar dos pesares, ainda existia vida para viver.

Os olhos do menino encantado seguiam captando cada movimento. Mesmo que não soubesse explicar, conseguia sentir a energia quase palpável do ambiente a céu aberto, círculo sagrado e musicado que alimentava os espíritos dos que conheciam o sofrimento com mais intimidade do que ninguém jamais deveria. A boca de comer, os olhos de observar, o corpo de dançar, pele de sentir... Tudo era ferramenta de absorção e troca da vida que pulsava ao seu redor. Ali, o menino, mesmo sem entender, entendia. Mesmo sem explicação, absorvia. Não eram necessárias palavras ou condução. O fluir era livre como a folha que voa solta pelo ar. O fogo era quente como o sol em dia de verão. A fartura era grande como em dia de colheita, mesmo que parecesse escassez. Era luz e escuridão, completas e complexas, já que uma não pode existir sem a outra. Ali, ele observava e sabia de onde vinha. Ali, ele se enxergava e assim sabia para onde deveria ir.

A ideia desse conto, um samba ancestral, foi lançada pelo querido Ramon Silva e foi escrito, carinhosamente, em agradecimento a quem apssa pelo meu caminho e é potência de inspiração.

Link da imagem: https://tokdehistoria.com.br/2015/03/05/batuques-em-lisboa/

Danielle Moraes

Escrevo, componho e dou uns rolé po aí. Bacharel em Serviço Social, Mestra em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo pela Universidade Nova de Lisboa.