Danielle Moraes
5 min readApr 3, 2023

Espelho

Acordou e esticou o corpo, caminhando pelo quarto e botando a cara na janela. A luz do sol tocou o rosto enquanto a quentura aquecia a pele. Lá fora, olhando do alto do prédio, carros, ônibus e motos passavam, e as pessoas pareciam formigas msituradas andando em todas as direções.

Contemplou o céu azul por um momento e inspirou fundo, vendo passar um filme na cabeça do último ano. Não queria ficar presa no passado, nem remoendo velhas emoções, mas fazia exatamente um ano do rompimento definitivo. No início havia sido difícil adaptar-se à nova realidade, afinal, foram anos de construção da parceria de vida. O problema se tornou exatamente esse. Construíram uma parceria de vida, quando não sabiam o que seria da vida no futuro. Talvez, esse fosse o caminho de todos os casais que não cabem em si, o que o futuro guarda. Talvez, ainda fosse possível remendar a vida e fazer funcionar a dois, mas a certeza que tinha no passado distante, há um ano, tornou-se um emaranhado de dúvidas. Sentia a própria energia desgastada e queria volta-la para si, observar as lacunas da própria vida e pensar para onde aquela menina cheia de sonhos havia ido, deixando no lugar a domesticidade e água morna. A dúvida, então, tornou-se tão pesada de carregar que a largou em algum lugar no canto do quarto e apagou a luz.

Morno, por si só, já não combinava muito com ela, mas seu espírito parecia ter esquecido disso, sendo lembrado aos poucos. Definhando em si mesma, ansiava a intensidade, mergulhos profundos e vôos altos. As pernas tremiam por aquele tipo de olhar que atravessa a alma e o desejo que aquece o corpo, que faz esquecer o próprio nome e sentir o sangue correndo nas veias.

Caminhou até a estante e puxou um livro preto com uma história - quase, proibida. Releu as palavras de Nedjima outra vez, que era o mais próximo do que desejava em seu coração.

"Mas o matuto não sabe o que eu sei. Que só se trepa bem por amor, nunca por dinheiro e que o resto é só desempenho. Amar e viver sem meio-termo. Amar e nunca baixar os olhos. Amar e perder no jogo. E, estropiada, aceitar a trepada sirva de forro quando o coração cai do topo da lona e não há rede nenhuma para protegê-lo. Se quebrar toda e aceitar viver desconjuntada. Já que a cabeça está salva..."*

Lembrou a primeira vez que o leu e voltou ao passado, ancorada no presente, que guardava o mesmo desejo. Ansiava sentir-se estropiada, a quentura, a explosão, a entrega e o leve descontrole de quando se pensa com o corpo, não com a cabeça. Desejava alguém que fizesse sua cabeça parar e causasse a sensação de completude, no ventre e na vida, mesmo que o compromisso não se desse nos moldes convencionais. Queria escolher e se sentir escolhida todos os dias, não porque a obrigação do compromisso a forçava, por dever às instituições - sagradas ou familiares, mas porque a escolha na liberdade canta mais alto do que na gaiola. Havia se cansado do meio termo, da segurança de saber o amanhã, da calmaria que a aliança traz ao humano quando sabe que a conquista foi feita. Não é que deixaram de se amar. O carinho, a parceria, a amizade ainda estavam lá. O amor ainda existia, em especial pelo passado que dividiram, mas, não via mais uma forma de dividir o futuro com ele. O espírito pedia o vôo, as marés, o desconhecido. Pedia a possibilidade de tomar decisões se priorizando, escolhendo apenas por si e sobre si.

Por um segundo, voltou ao luto vivido e questionou-se, mais uma vez, se havia tomado a melhor decisão. Mas, amava tanto a vida que levava agora, que a resposta veio rápido. E era bastante óbvia, até para as pessoas ao seu redor. Saiu do casulo e recuperou o brilho. A dúvida, que havia ficado no canto do quarto, no escuro, permaneceu lá quando pegou suas coisas e saiu porta a fora. E sair trouxe de volta aquilo que Audre Lorde chamou de erótico, mas também pode ser chamado de tesão.

Não foi fácil reencontrar esse tesão. Por algum tempo buscou conforto em corpos desconhecidos, tentando reencontrar a si mesma no espelho que é o outro. O que conseguiu foi olhar para dentro, descobrindo que havia se dado tanto, que estava vazia. Ou sentia-se vazia. Lembrou das últimas palavras que disse a ele "eu dei tudo de mim", até que parecia não ter mais nada, nem valor, nem para si. Havia se tornado uma sombra de si mesma e a penumbra parecia pouco em relação ao próprio brilho. Rememorou quando se viu sentada no fundo do poço, sem saber pra onde ir, até descobrir que ninguém a salvaria, e teria que escalar até a borda por conta própria. E o fez.

Ali, em meio aos cacos, assumiu um compromisso consigo que nunca mais ficaria vazia novamente, que a abundância da sua essência seria ofertada, em primeiro lugar, a si mesma. Que vasculharia cada pedaço de si até se reencontrar e redescobrir a mulher que havia se tornado.

Guardou o livro. Caminhou até o espelho e olhou nos próprios olhos por um longo tempo. Envolveu o corpo com os braços e sorriu, relembrando o quanto de carinho aprendeu a se dar quando buscá-lo nos outros não era mais uma opção.

Caminhou nua em direção ao banho, confortável consigo, uma sensação que não sabia se havia esquecido ou se já havia sentido antes. A água escorria pelo corpo e lavava as memórias de tristeza, deixando os aprendizados na superfície. As mãos passeavam pelo corpo e percebeu que aprendeu a amar sua fartura, suas curvas, seus cheiros. O jeito como o cantinho do olho fazia um vinco quando sorria, o quão poderosa se sentia montada sobre alguém, a liberdade com o próprio prazer. Lavou o corpo como quem se libertava de um peso, deixando a água levar toda a dor do passado.

Fechou a torneira, secou o corpo e vestiu a roupa mais leve e colorida que encontrou. Calçou as sandálias. Ajeitou o cabelo, passou batom e pegou a bolsa. Andou até a porta e, antes de sair, observou o sol novamente, sua nova casa, aquela que agora chamava de lar e desejava voltar para a própria paz. Sentiu orgulho de si, amor pulsando do seu corpo e ansiou mais do futuro. Um brisa bateu arrepiando e refrescando o corpo, lembrando-a que o caos, as vezes, cria ordem do imaginado. Bateu a porta e saiu. Era um novo dia de uma nova vida. E o sol estava lá de testemunha.

*A Amêndoa — Nedjima

*Você é maior do que imagina. Deixa seu sol brilhar que estamos aqui pra aplaudir.

Danielle Moraes

Escrevo, componho e dou uns rolé po aí. Bacharel em Serviço Social, Mestra em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo pela Universidade Nova de Lisboa.